Ciências Criminais Princípios Constitucionais penais e teoria do delito
Leitura Obrigatória PROFESSOR: LUIZ FLÁVIO GOMES
Aula
1: síntese histórica das ideias penais e direito penal e constituição;
Aula 2: princípios constitucionais penais; Aula 3: teorias do delito e
teoria constitucionalista do delito; Aula 4: tipo, tipicidade material e
tipicidade conglobante; Aula 5: resultado jurídico, imputação objetiva,
imputação subjetiva e imputação pessoal.
TEORIAS DO DELITO E TEORIA CONSTITUCIONALISTA DO DELITO
1. Evolução do conceito de delito
Durante
o século X foram desenvolvidos muitos conceitos de delito. Os
principais são: a) o causal-naturalista (ou causalista); b) o
neokantista; c) o finalista; d) o funcionalista teleológico ou
teleológico-racional (Roxin); e) o funcionalista sistêmico (Jakobs).
No
Brasil, até 1970, predominou a teoria causalista do delito (Bento de
Faria, Nélson Hungria, Basileu Garcia, Magalhães Noronha, Aníbal Bruno,
Paulo José da Costa Júnior etc.). Dessa época até hoje, passou a
preponderar a teoria finalista (Mestieri, Dotti, Toledo, Damásio,
Mirabete, Fragoso, Tavares, Cirino dos Santos, Bitencourt, Prado, Capez,
Greco, Queiroz, Nucci.
A integração sistemática entre
Constituição, Política criminal e Direito penal deve nos conduzir a
reestruturar a própria teoria do delito, que já não pode ser
compreendida e ensinada desde a perspectiva puramente legalista (ou
formalista). O Direito penal, sendo o instrumento mais poderoso de
exercício do poder, não pode ser estruturado exclusivamente no texto
legal, senão também com os limites e restrições impostos pela ou
derivados da Constituição.
1.1. Teoria causalista ou causal-naturalista
Essa
primeira teoria do delito se deve a von Liszt e Beling e enfocava a
conduta como simples movimento corpóreo de fazer ou não fazer. O crime,
naquele tempo (final do século XIX e princípio do século X), era
dividido em duas partes: objetiva e subjetiva.
• Parte objetiva:
era constituída da tipicidade e da antijuridicidade. A tipicidade, como
se sabe, foi desenvolvida por Beling, em 1906;
• Parte subjetiva:
era a culpabilidade, que consistia no vínculo do agente com seu fato que
se dá pelo dolo ou pela culpa. Como se vê, nesse período, dolo e culpa
faziam parte da culpabilidade.
1.2. Teoria neokantista1
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Dentre
as inúmeras diretrizes que tentaram superar o formalismo legalista do
positivismo jurídico deve ser destacado o neokantismo por sua
significação metodológica e particular incidência na Ciência penal. O
finalismo, em seguida, foi não só reação ao formalismo positivista como
ao próprio neokantismo. A Escola de Kiel (que foi sustentada pelo
nazismo), não quis superar o positivismo, senão o próprio Direito penal,
instrumentalizando-o para atingir suas finalidades autoritárias.
Essas
três correntes penais foram marcadas pelo: • método teleológico
neokantista em que o Direito penal existe para a proteção de valores; •
ontologicismo, no qual o Direito penal deve ter como premissas básicas
algumas estruturas lógicas que vinculam o legislador e • método
intuitivo (irracionalismo da Escola nazista).
O formalismo a que
se reduziu o positivismo jurídico (de Binding e de Rocco) é o seu ponto
mais crítico. O positivismo jurídico − que considerava a “lei” como puro
“factum” − reafirmou a substantividade jurídica da função penal,
rendendo homenagem à segurança jurídica e levando a extremos de precisão
a análise sistemática do delito. Mas padeceu de um excessivo
formalismo, de sutilezas, de abstração, que separaram o Direito da
realidade. Talvez isso tenha ocorrido pelo evidente mimetismo das
técnicas do Direito privado, isto é, por ter se valido dessas técnicas
sem sentido crítico. A maior preocupação dos positivistas era construir
um sistema lógico, um verdadeiro palácio do Direito. Não procuravam
(prioritariamente) alcançar a justiça em cada caso concreto, senão a
construção de um sistema lógico.
O positivismo jurídico enfocou o
delito de forma equivocada e insatisfatória. As três categorias
fundamentais do delito até então admitidas (ação, antijuridicidade e
culpabilidade), com efeito, eram descritas - segundo a perspectiva da
teoria causalista da ação - de forma não consistente.
A ação, no
esquema positivista causalista (ou causal-naturalista), era concebida
como movimento corporal que produzia uma determinada modificação no
mundo exterior. Essa concepção naturalista da ação não podia explicar,
por exemplo, a omissão, pois a essência desta não é naturalista, senão
normativa. Omitir não significa “não fazer”, senão “não fazer o que o
ordenamento jurídico espera” que seja feito; a omissão implica uma
referência à “ação esperada”, uma valoração que emana da lei. No crime
omissivo o sujeito responde não porque simplesmente omitiu, mas sim,
porque não praticou a conduta esperada e determinada pelo ordenamento
jurídico.
O mesmo acontecia com a antijuridicidade, que era isenta
de todo significado valorativo (aliás, desvalorativo) no esquema
positivista. A antijuridicidade expressaria só uma relação lógica de
contradição entre o fato acontecido e a norma concreta considerada, mas
sem carga de desvalor algum, neutra (concepção formal da
antijuridicidade). Mesmo quando, posteriormente, admitiu-se a concepção
material da antijuridicidade, com a inclusão do bem jurídico na teoria
do delito, pouco mudou, porque o bem jurídico foi compreendido em termos
naturalísticos1 e a antijuridicidade passa a ser o perigo ou lesão do
bem jurídico, no sentido de causa de um perigo ou de uma lesão, isto é,
no sentido naturalístico. Dessa forma, não poderiam ser compreendidos,
por exemplo, os denominados requisitos subjetivos do injusto, pois se o
decisivo era a lesão ao bem jurídico, esta era independente de tais
requisitos; e, em conseqüência, teria que considerar antijurídica toda
ação contrária ao bem jurídico, embora não concorresse o especial ânimo
requerido pela lei.
Finalmente, o esquema positivista admitiu (no
momento da configuração da culpabilidade) a supremacia psicológica. Com
efeito, aparecia a culpabilidade como nexo psicológico (anímico) entre o
autor e o fato antijurídico (teoria psicológica da culpabilidade); o
dolo e a culpa eram suas espécies, isto é, a forma pela qual o agente se
vinculava com seu fato. Imputabilidade e dolo e culpa eram os
requisitos da culpabilidade.
De acordo com essa concepção
subjetivo-descritiva da culpabilidade o crime conta com duas partes: uma
objetiva e outra subjetiva: à primeira pertencem a tipicidade e a
antijuridicidade e à segunda a culpabilidade, que abarca tudo que se
refere ao plano subjetivo e que permite descrever a relação psicológica
entre o sujeito e sua ação antijurídica. Tal concepção, porém, não
explicava a imputabilidade nem as causas de exclusão da culpabilidade
que não afetam a relação psicológica mencionada; nem explica a culpa ou a
culpa inconsciente, onde falta
1 Interesse da vida que devia se constatar empiricamente (Liszt, 1884).2
Ciências
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necessariamente toda relação espiritual entre autor e fato.
Na
visão neokantista, a ação deixa de ser entendida como mero movimento
corporal em sentido naturalístico para se destacar seu significado
social: prefere-se falar em comportamento humano ou de conduta e não
mais só de ação. Radbruch (1904, Ûber den Schuldbegriff) destacaria a
impossibilidade de utilizar um superconceito (Oberbegriff) de ação que
abarcasse a ação e a omissão. A concepção meramente descritiva, neutra e
objetiva da tipicidade, de outro lado, não se coaduna com a descoberta
dos requisitos normativos e subjetivos do tipo. A crítica dos
neokantistas ao conceito naturalístico de ação tem procedência. Tal como
concebida, não explicava no Direito penal a omissão.
A
antijuridicidade deixa de ser concebida como expressão lógica de uma
contradição entre a conduta e a lei, quer dizer, em seu sentido formal.
Passa a ser admitida como danosidade social, com ajuda do conceito do
bem jurídico.
Com isso, as relações entre tipicidade e
antijuridicidade são entendidas de outra maneira: aquela não é a
descrição neutra de um processo externo, senão a concreção das
características essenciais do injusto: os tipos penais são tipos do
injusto. A antijuridicidade, junto com a culpabilidade, serão as duas
características materiais do delito, enquanto a tipicidade − antes, de
igual categoria que a antijuridicidade − conservará exclusivamente uma
função formal de garantia.
A concepção neoclássica, própria do
método teleológico dos neokantianos, conduziu a uma configuração não só
psicológica da culpabilidade, senão também normativa”. Em outras
palavras, a culpabilidade é vista também como reprovação. Isso permitia
explicar a culpabilidade nos casos onde falta o nexo psicológico entre o
autor e o resultado, e viceversa: fundamentar a ausência de
culpabilidade, apesar da existência de referido nexo psicológico. Assim,
por exemplo, Quem falsifica uma assinatura ameaçado por uma arma na
cabeça atua dolosamente em relação ao falso, mas não podia agir de modo
diferente. Há vínculo psicológico entre o agente e a conduta (há dolo),
mas não há exigibilidade de conduta diversa, ou seja, não há
culpabilidade, não há reprovabilidade, em razão da coação moral
irresistível.
Fundamentalmente, a transformação da culpabilidade
de “psicológica” para “psicológiconormativa” deve-se a Frank que, em
1907, descobriu o requisito da exigibilidade de conduta diversa. Esse
mesmo requisito foi posteriormente aprofundado por Goldschimit e
Freudental.
1.3. Teoria finalista
O neokantismo foi uma
resposta à estreita interpretação da realidade penal levada a cabo pelo
positivismo naturalista. O neokantismo reagiu contra o causalismo e o
finalismo lançou suas críticas contra o neokantismo. A fenomenologia,
para a qual o Direito penal deve partir de algumas premissas
pré-estabelecidas (a ação é finalista, a culpabilidade é normativa
etc.), constitui a essência do finalismo. E é, por sua vez, uma resposta
ao unilateral ponto de vista teórico-cognoscitivo do neokantismo.
A
doutrina finalista aparece nos anos trinta do século X, quando se
achava em pleno auge o neokantismo. O pensamento finalista foi uma
resposta à obra de Schwinge: Teleologische Begriffsbildung im
Strafrecht, publicada em 1930, que é produto e culminação do pensamento
neokantiano.
A obra que iniciou a corrente finalista foi Kausalität und Handlung (Causalidade e Ação), de
Hans
Welzel, cujas idéias se concretizam posteriormente em outros artigos e
monografias2. A incidência delas na sistemática penal viria a ocorrer em
1939, ano em que Welzel publica seus Studien zum System des Strafrechts
(Estudos sobre o sistema do Direito penal).
A ação, para Welzel
(1939), é, ao mesmo tempo, causal e final. Às ciências naturais
interessa a ação como fenômeno do mundo natural, como fato causal. Mas
ao Direito, que pertence à ordem do pensar, só interessa a dimensão ou
aspecto final enquanto essência da ação, imanente à mesma.
2 Über
die Wertungen im Strafrecht: sobre as valorações no Direito penal (1932)
e Naturalismus und Wertphilosophie im Strafrecht: sobre Naturalismo e
Filosofia dos valores no Direito penal (1935)3
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É
interessante destacar − mais do que o conceito de ação ou de
culpabilidade em Welzel − a repercussão metodológica que têm as
estruturas lógico-objetivas welzelianas. Estamos nos referindo ao
caráter vinculante delas, que operam (ou deveriam em sua concepção
operar) como limite ao próprio legislador, e não simplesmente para
integrar as lacunas (interpretação) do Direito positivo. No tempo de
Welzel notava-se muito abuso do Direito penal, e ninguém falava em
limites ao legislador. Todo o sistema finalista de Welzel foi construído
sobre essa base: o Direito penal possui certas premissas que devem ser
reconhecidas pelo legislador.
Em suma, segundo o finalismo, as
estruturas lógico-objetivas (da ação e da culpabilidade), portanto,
limitariam a vontade do legislador, que deixaria de ser absolutamente
livre.
O finalismo de Welzel, entretanto, apesar do seu evidente
direcionamento para o objetivismo ontologicista, não conseguiu uma
efetiva superação do positivismo legalista. Isso, talvez, fosse sua meta
inicial, mas não foi alcançada. Nem Welzel nem seus seguidores
conseguiram transformar o Direito penal formalista do século X em
instrumento que pudesse fazer justiça em cada caso concreto.
Apesar
de o finalismo partir da existência de certos conceitos ou realidades
pré-jurídicas, como a ação final e a capacidade de autodeterminação do
ser humano conforme seus fins, não conseguiu a desejada aproximação com a
realidade concreta, ficando ancorado nas referidas estruturas
lógico-objetivas, sem transcendê-las. Se de um lado seu método dedutivo
axiomático faz derivar as soluções jurídicas dos dados ontológicos
mencionados, de outro, acentua a importância do pensamento
abstrato-sistemático. Com razão os penalistas da Escola de Kiel (Segunda
Guerra Mundial) afirmavam que “Welzel proporcionou à dedução
lógico-dogmática uma força desconhecida desde os tempos de Binding”.
Com
base na doutrina finalista também foi possível construir um Direito
penal positivista legalista, pouco preocupado com a solução justa do
caso concreto. Aliás, de todo enfrentamento entre os neokantistas e
positivistas ou mesmo entre finalistas e positivistas, dois aspectos
ganham relevância: o isolamento do Direito penal diante da realidade e o
desenvolvimento teórico do Direito penal, que foi muito superior aos
outros ramos do Direito.
A causa principal de uma relativa
aceitação do finalismo pela jurisprudência e doutrina clássicas no
Brasil foi, então, a seguinte: perceberam depois de um certo tempo que
mesmo adotando o finalismo ainda era possível conviver com o positivismo
legalista, com os ditames da lei.
Na teoria do delito, várias
foram as repercussões do finalismo de Welzel: o dolo e a culpa, como
dados integrantes da ação, passaram a fazer parte do tipo (leia-se: do
fato típico). Deixaram de integrar a culpabilidade, que se transformou
em puro juízo de censura, de reprovação. Eliminados os requisitos
subjetivos da culpabilidade, nela somente restaram requisitos
normativos: a) imputabilidade; b) potencial consciência da ilicitude e
c) exigibilidade de conduta diversa.
Todos esses requisitos são
normativos porque devem ser aferidos pelo juiz. Nem a imputabilidade nem
a consciência da ilicitude, que se acham na cabeça do agente, devem ser
enfocados desde essa perspectiva. Cabe ao juiz examinar em cada caso
concreto se o agente tinha capacidade de entender ou de querer e,
ademais, se tinha possibilidade de ter consciência da ilicitude, ainda
que seja nos limites de sua capacidade de compreensão do injusto - numa
“valoração paralela na esfera do profano” (Mezger, Tratado de derecho
penal, trad. de 1955), isto é, valoração do injusto levada a cabo pelo
leigo, de acordo com sua capacidade de compreensão.
O dolo e a culpa integram a tipicidade ou contariam com dupla posição, isto é, estariam na tipicidade e também na culpabilidade?
1.4. Atuais tendências do Direito penal no plano dogmático (orientações teleológicas e funcionalistas − Roxin e Jakobs)
O
Direito positivo, o mundo dos valores (reconhecidos desde a perspectiva
de quem conhece a realidade) e a esfera ontológica constituíram o
centro de gravidade da evolução do sistema 4
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Os
três momentos mais significativos da dogmática penal, conseqüentemente,
até então, foram: o positivista naturalista (teoria causal da ação); o
neokantiano (teoria dos valores) e o finalista (teoria finalista da
ação); respectivamente. Em outras palavras, as três etapas mais
significativas da teoria do delito até a década de sessenta foram: o
causalismo, o neokantismo e o finalismo.
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