quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

(Parte 3 de 4) Ciências Crminais Princípios Constitucionais penais e teoria do delito


Todo o âmbito do injusto penal está atrelado à violação da norma primária (ofensa ao bem jurídico protegido). Todo o âmbito da sancionalidade (ou punibilidade) está vinculado à violação da norma secundária (descumprimento da norma imperativa de conduta).
A concepção teleológico-constitucional de delito, como se vê, é normativista, no sentido de que está intimamente atrelada às normas. Nisso se distingue diametralmente dos sistemas punitivos em curso, que não transcendem em geral o nível da legalidade. São, portanto, legalistas. O fato para ser típico no sistema legalista basta adequar-se à letra da lei. O fato para ser típico no sistema normativista (teleológico-constitucional) precisa adequar-se à lei e, mais que isso, necessita afetar o bem jurídico protegido pela norma primária. O sistema legalista é ontológico e em certo sentido naturalístico. O normativista é axiológico, porque depende da violação dos valores protegidos pela norma. Repassar as funções da norma penal pode ser sumamente relevante para se compreender o sistema normativista ou axiológico (teleológico-constitucional).
4. Funções da norma penal e teoria do delito
Norma jurídica é gênero que pertence à norma jurídico-penal. A norma é extraída dos textos legais. Não se pode nunca confundir a lei com a norma, muito menos a lei penal com a norma penal. Os textos legislativos são os veículos das normas. Lei penal incriminadora é o conjunto dos dados descritivos formais do delito. Normas são os comandos emanados dessa lei (ou dessas leis).
A lei penal, de qualquer modo, não é neutra. Toda lei penal existe em razão de uma valoração legislativa. Segundo a concepção que adotamos não existe texto legislativo incriminador que não esteja em função da: a) revelação de algum valor indispensável para a convivência humana; b) determinação de alguma conduta (de uma pauta de conduta).
As normas penais, por isso mesmo, são divididas (num primeiro momento) em duas categorias: • normas primárias (ou normas de conduta): indicam o que está proibido ou determinado. Revelam o valor protegido e qual é a pauta de conduta exigida para que se respeite esse valor.
• normas secundárias (ou normas de sanção): orientam quais são as conseqüências jurídicas do seu descumprimento.
Ciências Crminais Princípios Constitucionais penais e teoria do delito- A ula 03
É comum na doutrina distinguir na lei penal o preceito primário (descrição típica da conduta) do preceito secundário (sanção). A divisão entre normas primárias (de conduta) e secundárias (de sanção) nada tem a ver com essa classificação, como você verá em seguida.
Normas primárias ou de conduta (Verhaltensnormen): são todas as que definem, determinam ou delimitam o âmbito do proibido (e, em conseqüência, da liberdade) e dirigem-se a todas as pessoas.
As normas primárias, de outro lado, são normas de mandamento (determinam uma conduta) ou de proibição (proscrevem determinada conduta). Há portanto as: • normas mandamentais - nos crimes omissivos. Por exemplo: omissão de socorro. O legislador manda que o sujeito pratique uma determinada conduta: que preste socorro. • normas proibitivas - nos crimes comissivos ou cometidos por ação.
Por exemplo: homicídio. O legislador proíbe a realização de uma determinada conduta – é proibido matar.
Normas de sanção ou secundárias (Sanktionsnormen): são todas as que cuidam do castigo penal, ou seja, que delimitam ou demarcam o âmbito do punível. Essas normas têm como destinatárias as pessoas em geral (antes do cometimento do delito) e os violadores dela (depois do delito). Quem as aplica é o juiz.
Na verdade, existem duas categorias de normas secundárias: as que impõem penas e as que impõem medida de segurança. As primeiras vinculam-se diretamente com as normas primárias; as segundas dependem da infração da norma primária e também da constatação da periculosidade do agente (Silva Sanchez, 1992).
As normas primárias, por sua vez, não só existem para a revelação da importância de um determinado valor (aspecto valorativo da norma primária), como também para estabelecer uma determinada pauta de conduta (aspecto imperativo da norma primária).
De todo exposto infere-se que das leis penais (uma única ou um conjunto delas) extraímos duas normas penais: a primária (âmbito do proibido) e a secundária (âmbito da sanção). Da norma primária decorre: (a) a norma primária valorativa (que sinaliza a relevância de um determinado valor); (b) a norma primária imperativa (que impõe uma determinada pauta de conduta). Exemplificando: do enunciado legal contido no art. 121 do CP (matar alguém – Pena de seis a vinte anos de reclusão), devemos extrair a norma de conduta ou primária (é proibido matar) assim como a norma de sanção (pena de seis a 20 anos). Da norma primária devemos extrair os dois aspectos examinados: a norma primária valorativa (essa norma indica a relevância de um bem jurídico, no caso, a vida) e a norma primária imperativa (que nos impõe uma determinada pauta de conduta, no caso, a obrigação de não matar, dever de respeitar o valor vida).
A norma de sanção é dirigida imediatamente ao juiz, que está obrigado a impor a pena cominada quando verificado seu pressuposto (que é a realização da conduta proibida); mediatamente é dirigida a todos.
A norma de conduta é imediatamente dirigira a todos, que devem atentar não só para o valor que ela tem como importante como também para a pauta de conduta imposta. Por conseguinte, detrás da norma primária de conduta estão o bem jurídico que se pretende proteger assim como a pauta de conduta esperada. Quanto ao bem jurídico, para descobri-lo temos que perguntar: por que o legislador proíbe ou determina a conduta? Por exemplo: por que o legislador proíbe matar? Porque quer fazer com que todos compreendam a relevância do bem jurídico vida. Proibindo a morte, qual comportamento espera (e exige) o legislador de todos nós? O de respeitar o valor vida. É exigido de todos nós que nos comportemos de forma a não afetar esse bem jurídico (nem dolosa, nem culposamente).
A ordem lógica, portanto, é esta: a lei revela a norma de conduta (norma primária) e esta revela o valor que se reputa importante proteger bem como a pauta de conduta esperada. A lei (matar alguém, CP, art. 121) exprime a norma primária de conduta (é proibido matar) e esta revela o valor que se pretende tutelar (a vida) assim como o comportamento que devemos adotar (de respeito ao valor vida). A norma de conduta, em suma, revela não só a pauta 10
Ciências Crminais Princípios Constitucionais penais e teoria do delito- A ula 03 de conduta que o ordenamento jurídico espera de todos nós (não podemos matar) como também a importância do valor que se pretende assegurar (vida). Afetado o bem jurídico incide a norma secundária (norma de sanção).
Fundamental é perceber que o legislador, quando elabora as normas de conduta (que são normas proibitivas, nos crimes comissivos ou são mandamentais, nos crimes omissivos), enfoca a realidade numa perspectiva ex ante (antes do cometimento de qualquer infração); quando elabora as normas de sanção (punitivas) enfoca a mesma realidade desde a perspectiva ex post.
Do exposto infere-se que as normas penais primárias são valorativas, pois existem para nos chamar a atenção para alguns valores relevantes, e também imperativas, porque impõem coativamente uma determinada pauta de conduta a todos.
A construção de um Direito penal regido pelo paradigma da ofensividade, de cunho teleológico-constitucional (material e garantista) − que é o que estamos sustentando nesta Disciplina − parte da premissa básica de que a norma penal (primária) possui caráter acentuada e prioritariamente valorativo7, isto é, ela existe para a tutela de alguns bens ou interesses (de especial relevância) consubstanciados em relações sociais valoradas positivamente pelo legislador para constituir o objeto de uma especial e qualificada proteção, como é a penal8. O aspecto valorativo da norma primária, embora não seja o único, vem em primeiro lugar. Ocupa posição destacada. Aliás, sem afetação concreta do valor positivamente enfocado pelo legislador não que se pode falar em crime.
Exclusivamente quando o bem existencial (consubstanciado numa relação social e valorado positiva e juridicamente) resulta significativamente afetado, perturbando a convivência em sociedade, é que a (drástica) sanção penal deve ter incidência.
Se a norma penal primária (para além de impor coativamente uma determinada pauta de conduta) existe sobretudo para sinalizar a relevância de um determinado bem jurídico, não basta (para a existência do fato punível) a mera intenção do autor (sua “vontade má”) ou que a conduta apenas se exteriorize (princípio da materialidade da ação ou do fato) ou tampouco que se realize formalmente a descrição da lei (subsunção formal do fato à descrição legal). A adequação típica formal da conduta é necessária, porém, não suficiente. Tipicidade legal não é a mesma coisa que tipicidade penal (material). Tipo penal não é a mesma coisa que lei penal. O tipo penal não pode ser entendido em sentido puramente positivista formalista, senão no sentido de um tipo de injusto (que é expressão de um fato valorado negativamente).
Somente quando a conduta dotada de periculosidade (criadora ou incrementadora de riscos proibidos relevantes) alcança o núcleo de garantia e proteção da norma, que expressa um bem ou interesse jurídico, é que se pode falar em um fato punível penalmente relevante.
Mas admitir, desde logo, o caráter preponderantemente valorativo da norma penal primária não significa concluir que dela tenha que ser excluída a característica da imperatividade. Na norma penal primária, portanto, dúvida nenhuma pode existir, é uma norma de valoração bem como norma de determinação, de imposição de condutas, conforme Cobo de Rosal, García-Pablos de Molina e Rodriguez Mourullo. No caso do artigo 121 do Código Penal, por exemplo, do qual nos valemos uma vez mais, a norma penal primária que daí emana (que está detrás da letra da lei) não só retrata um juízo de valor positivo em relação ao bem existencial vida, como estabelece coativamente (mediante pena) uma determinada pauta de conduta, qual seja, dever de respeitar a vida alheia, dever de não matar. Da norma primária emana, como se vê, a exigibilidade de uma determinada conduta. A norma exige de todos que se comportem de uma determinada forma.
Aqui reside a chamada exigibilidade da conduta, que decorre da imperatividade da norma. E se o sujeito se comporta de modo diferente (matando alguém, por exemplo), cabe verificar se
7 Confira Cobo Del Rosal y Vives Antón, Derecho penal-PG, p. 248 y s; Rodríguez Mourullo, p. 324); Bajo Fernández (1977, p. 25). Sobre a recepção da concepção valorativa pelo Código Penal de 1944 (texto refundido de 1973), confira García Arán (1995, p. 27). O princípio da ofensividade fundamenta-se na consideração do delito como um ato desvalorado, isto é, contrário à norma de valoração: assim Carbonnell Mateu ( p. 209). Com relação às concepções valorativa e imperativa da norma penal leia Huerta Tocildo, (p. 17-20); Schünemann, ( p. 75-76); Bacigalupo (1986, p. 61); Silava Sánchez (1992, p. 334); Jescheck ( p. 318); Torres Herrera ( p. 35); De La Cuesta (1996, p. 149). 8 Sobre a polêmica acerca do caráter valorativo da norma penal conferir ainda Bacigalupo (198 , p. 5) e
Octavio de Toledo y Ubieto ( p. 87).1
Ciências Crminais Princípios Constitucionais penais e teoria do delito- A ula 03 era possível (nas circunstâncias em que agiu ou não agiu) comportar-se de modo diverso. A exigibilidade de conduta diversa, que exprime o conteúdo da (reprovação da) culpabilidade, tem vinculação estreita com o aspecto imperativo da norma primária. Diferentemente, o aspecto valorativo dela tem íntima conexão com o injusto penal (com o fato proibido).
Correlacionando a teoria das normas com a teoria do delito e a culpabilidade temos que inferir o seguinte: (a) a norma primária valorativa está no centro do injusto penal (entendido como fato materialmente típico e antijurídico); (b) a norma primária imperativa fundamenta a culpabilidade (entendida como poder agir de modo diverso, conforme o Direito, conforme a pauta de conduta emanada da norma imperativa) e (c) a norma secundária expressa a categoria da punibilidade.
O crime, entendido como fato punível, possui três requisitos: a) fato materialmente típico; b) antijuridicidade e c) punibilidade.
Os dois primeiros relacionam-se com a norma primária valorativa; o último (punibilidade) com a norma secundária (ou de sanção). Já a culpabilidade está atrelada com o aspecto imperativo da norma (que exige uma determinada pauta de conduta). O agente se torna culpável na medida em que não atua conforme o Direito, conforme essa pauta de conduta (emanada da norma imperativa).
. Sistemas de delito a) Sistemas bipartidos
Chamam-se bipartidos os sistemas que procuram definir o delito com apenas dois requisitos. Como veremos em seguida, inúmeras correntes (no Direito penal) sustentam que bastariam duas categorias para a revelação do que se entende por delito.
1’) Teoria do tipo de injusto
O primeiro sistema bipartido de delito (na sua formulação clássica) “afirma a unidade conceitual entre a tipicidade e a antijuridicidade, como dados integrantes do tipo de injusto, que admitem operacionalização analítica separada, mas não constituem categorias diferentes do injusto penal. O tipo legal é a descrição da lesão de bens jurídicos e a antijuridicidade é um juízo de valoração do comportamento descrito no tipo legal, formando o conceito de tipo de
Encaixam-se nessa formulação tanto a concepção original sintética de delito da teoria causalista (ou causal-naturalista), que dividia o delito em duas partes (objetiva e subjetiva), como o conceito de tipo de injusto do neokantismo (Mezger), que passou a entender que a tipicidade era a ratio essendi da antijuridicidade (fundindo-se, com isso, os dois requisitos). O crime, portanto, seria o fato antijurídico + culpabilidade.
2’) Teoria dos elementos negativos do tipo
Enquadra-se ainda nessa estrutura bipartida a chamada teoria dos elementos negativos do tipo, que concebe as causas de exclusão da antijuridicidade (justificantes, tal como a legítima defesa, estado de necessidade etc.) como dados típicos negativos. No homicídio, v.g., deveríamos ler a figura típica da seguinte maneira: “matar alguém, salvo em legítima defesa, estado de necessidade etc.”. A presença de uma causa justificante significaria exclusão da tipicidade, não da antijuridicidade.
É criticável essa teoria porque, sobretudo, nega autonomia para as causas justificantes (cf. Gomes, L.F., Erro de tipo e erro de proibição. 5. ed., São Paulo: RT, 2001, p. 80 e s.).
3’) Corrente finalista brasileira dissidente 9 Cf. SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p. 3.12
Ciências Crminais Princípios Constitucionais penais e teoria do delito- A ula 03
No Brasil, como sabemos, posição peculiar é ocupada por uma parte da doutrina finalista
(Damásio de Jesus, por exemplo)10 que não concebe a culpabilidade como integrante do conceito de delito, senão como pressuposto da pena. Crime, portanto, seria (só) “o fato típico e antijurídico”. Há autonomia da tipicidade frente à antijuridicidade, porém, exclui-se da teoria do delito a culpabilidade.
Essa é uma corrente aceitável, porque a culpabilidade efetivamente não faz parte do conceito de delito. De qualquer modo, esta última categoria não pode ser enfocada só como pressuposto da pena (todos os requisitos do fato punível, na verdade, são pressupostos da pena). A crítica que se pode fazer contra essa corrente consiste na pouca importância que concede para a punibilidade (ameaça de pena). Recorde-se: sem ameaça da pena o crime (fato típico e antijurídico) não conta com nenhuma efetividade penal. A punibilidade abstrata (fato formalmente ameaçado com pena) é absolutamente imprescindível para a efetividade do delito. Se o legislador descrever uma determinada forma de ofensa a um bem jurídico e não cominar nenhuma pena, isso se transforma em puta recomendação moral. A efetividade do delito requer a cominação de pena. Com isso então se conclui que quatro são as categorias penais mais relevantes: tipicidade, antijuridicidade, punibilidade e culpabilidade.
4’) Corrente bipartida teleológica
É acolhida, por exemplo, por Silva Sánchez11, que assume que o delito conta com dois aspectos fundamentais: por um lado é infração da norma primária (antijuridicidade) e, por outro, é um fato que contém os pressupostos de aplicação da norma secundária (sancionabilidade).
b) Sistemas tripartidos

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