quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

(Parte 2 de 4) Ciências Crminais Princípios Constitucionais penais e teoria do delito


Todos os penalistas do século X (causalistas, neokantistas ou finalistas) que construíram suas doutrinas sobre bases eminentemente positivistas (mera interpretação da lei penal e sua sistematização) entendem (tal como Binding, que é o pai do positivismo jurídico) que a Ciência do Direito penal esgota-se na Dogmática penal.
Fizeram, assim, só Dogmática. E foram acríticos, assépticos, neutros, não se preocuparam com a construção de uma ciência evolutiva. Afastaram-se da realidade e elaboraram um Direito penal extremamente formalista e conservador (proteção do status quo). Não estudaram Criminologia, não se aprofundaram na Política criminal. Não admitiram os postulados político-criminais dentro da teoria do delito. Aceitaram o método meramente subsuntivo em relação à tipicidade (fato típico é o descrito na lei). Glorificaram o legislador, poucas vezes foram críticos em relação à caótica legislação.
No panorama dogmático-penal seguinte (aos anos sessenta) ganharam protagonismo considerações axiológicas (valorativas ou normativas), de raízes neokantianas; uma busca de soluções ad hoc (o justo em cada caso concreto), cuja origem reside nas orientações críticas da dogmática dedutivo-abstrata dos anos anteriores.
A característica predominante da moderna dogmática jurídico-penal é a teleológicovalorativa, com a conseguinte tendência à normativização das categorias do sistema penal (da tipicidade, antijuridicidade etc.). O delito, desse modo, já não conta só com uma dimensão natural ou ontológica (fática), mas também com uma dimensão axiológica (valorativa), retratada na exigência da imputação objetiva bem como do resultado jurídico relevante. Está se produzindo uma revisão geral do pensamento dogmático acrítico. A ciência penal, na atualidade, está aberta aos princípios político-criminais e preocupa-se com a solução justa de cada caso concreto.
Destacam-se na atualidade as propostas dogmáticas funcionalistas ou teleológicas. O ponto comum entre elas consiste na pretensão de construir sistemas abertos aptos para uma permanente orientação às exigências político-criminais assim como à própria evolução dos conhecimentos.
Considera-se como ponto de partida do moderno pensamento teleológico-valorativo o livro Kriminalpolitik und Strafrechtssystem e, mais recentemente, a obra Grundfragen des modernen Strafrechtssystems .
No âmbito da atual tendência à normativização do sistema penal (e particularmente do delito: o delito e o Direito penal não podem abrir mão de um momento axiológico fundamental) e suas categorias, convém distinguir duas sub-orientações teleológico-funcionalistas:
• a moderada: que é sustentada por Roxin (1997) e seus seguidores5. • a radical: representada pelo funcionalismo-sociológico ou sistêmico
3 Política Criminal e Sistema do Direito Penal, de Roxin, obra programática cuja primeira edição alemã veio a público em 1970. 4 Fundamentos dos modernos sistemas penais, obra coletiva compilada por Schünemann e publicada em 1984. 5 Saiba mais sobre a orientação sustentada por Claus Roxin nas seguintes obras: ROXIN; Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal, trad. de Luís Greco, Rio de Janeiro: Renovar, 2000; ROXIN; Claus. A apreciação jurídico-penal da eutanásia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 8, fascículo 32, São Paulo, 2000; ROXIN; Claus. A culpabilidade como critério limitativo da pena. Revista de Direito Penal, nº 1/12, 1973, Rio de Janeiro: Borsoi, p.7 e s.; ROXIN; Claus. A teoria da imputação objetiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 10, fascículo 38, São Paulo, 2002; ROXIN; Claus. Culpa e responsabilidade. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, nº 4, Lisboa: Aequitas, 1991, p.503 e s; ROXIN; Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no Direito Penal, 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002; ROXIN; Claus. Problemas atuais da política criminal. Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, vol. 2, fascículo 4, Porto Alegre, 2001; ROXIN; Claus. Sobre a fundamentação político-criminal do sistema jurídico-penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 9, fascículo 35, São Paulo, 2001.
Ciências Crminais Princípios Constitucionais penais e teoria do delito- A ula 03
(teoria dos sistemas) de Jakobs6.
A pretensão de Roxin consiste em superar as barreiras existentes entre o Direito penal e a Política criminal, fazendo do sistema penal um instrumento válido para a solução satisfatória (político-criminalmente) dos problemas reais levados para o sistema penal. Sua preocupação é, portanto, prática.
Sugere Roxin a decidida orientação do sistema do Direito penal às valorações da Política criminal, isto é, todas as categorias do sistema penal (tipicidade, antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade) seriam redefinidas em função das exigências político-criminais. Um bom exemplo dessa interferência da Política criminal no Direito penal pode ser dado com o princípio da insignificância, que contava com pouco (ou nenhum) espaço dentro do Direito penal formalista e lógico-dedutivista. Na medida em que orientações político-criminais de cunho minimalista (Direito penal mínimo) ganham terreno no âmbito penal, já não podemos enfocar a tipicidade de maneira puramente formalista (ou naturalista ou finalista); só pode ser típico o fato ofensivo relevante. Em se tratando de uma ofensa insignificante, ínfima, embora o fato seja formalmente típico, materialmente não o é (porque o Direito penal só deve intervir quando necessário, posto que é a ultima ratio). Por considerações de ordem político-criminal o fato insignificante deixa de ser típico, isto é, está fora do Direito penal.
Com a reorientação de todas as categorias e subcategorias do sistema penal procura Roxin evitar o lamentável contra-senso que propiciava o positivismo jurídico, com seus excessos abstrato-dedutivos, que muitas vezes apresentava uma interpretação dogmaticamente correta e impecável mas que, do ponto de vista político-criminal, não resolvia o problema concreto de forma adequada e satisfatória.
Jakobs, por seu turno, pretendendo uma nova fundamentação da dogmática jurídico-penal e do sistema, correlaciona a missão do Direito penal (de prevenção geral) com a perspectiva sociológico-funcionalista.
A teoria luhmaniana dos sistemas permitiria, no seu entender, a renormativização das velhas categorias da dogmática, inservíveis por sua vinculação às inexpressivas estruturas lógicoobjetivas e conceitos pré-jurídicos.
Jakobs, desde logo, diferentemente de Roxin, torna absoluto o critério funcional, rejeitando toda limitação que proceda do âmbito ontológico (teoria finalista de Welzel) ou mesmo do sentido ordinário da linguagem ou dos postulados político-criminais (Roxin).
As orientações moderadas (Roxin, 1970), por seu turno, não conferem tanta magnitude ao sistema, nem às exigências derivadas dele, conservando certa operatividade aos limites externos ao Direito penal ancorados na esfera do ser (natureza das coisas) ou no âmbito da própria linguagem. Ademais, o funcionalismo moderado de Roxin orienta as categorias do sistema do Direito penal às finalidades da política criminal (intervenção mínima, exclusiva proteção de bens jurídicos, resultado jurídico relevante etc.) que são várias e diversas entre si e que se limitam reciprocamente.
Em suma, enquanto para Jakobs, 1984, somente são decisivas as necessidades “sistêmicas”, orientadas ao princípio supremo da “função do Direito penal” (a prevenção-integração), Roxin dá acolhimento a valores e princípios garantistas no momento de configurar o sistema do Direito penal (direito positivado) e da dogmática jurídico-penal (que deve estudar, sistematizar e criticar o direito positivado). Enquanto na teoria teleológico-funcional (Roxin) o sistema penal deve ser orientado para as finalidades político-criminais, na construção sistêmica (Jakobs) o sistema penal deve ser orientado para as necessidades sistêmicas.
As teorias funcionalistas radicais (Jakobs e seus seguidores) têm como ponto comum a mudança do centro de atenção do sistema social, subordinando, a seu bom funcionamento − à produção de um eficaz consenso −, qualquer valoração ética, política, individual ou coletiva.
Saiba mais sobre a orientação sustentada por Jakobs nas seguintes obras: JAKOBS, Günther. A Imputação
Objetiva no Direito Penal, trad. de André Luís Callegari, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000; JAKOBS, Günther. Fundamentos do direito penal, trad. de André Luís Callegari, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003; JAKOBS, Günther. Sociedad, norma, persona. Trad. Manuel Cancio Meliá e Bernardo Feijoó, Bogotá, UEC, s/d; JAKOBS, Günther. Derecho penal-PG. Trad. Cuello Contreras e Serrano Gonzalez de Murillo, Madri, Marcial Pons, 1995.
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Desde essa ótica sistêmica do funcionalismo radical, o indivíduo não é mais que um “subsistema físico-psíquico”, mero centro de imputação de responsabilidades e o próprio Direito um “instrumento de estabilização social, de orientação das ações e de institucionalização das expectativas”. Ao “subsistema penal” corresponde assegurar a “confiança institucional” dos cidadãos, entendida a referida função como forma de integração no sistema social.
A violação de uma norma (o delito) é considerada socialmente disfuncional, porém, não porque lese ou coloque em perigo determinados bens jurídicos, senão porque questiona a “confiança institucional” no sistema. O delito é, antes de tudo, para o funcionalismo radical, “expressão simbólica de uma falta de fidelidade ao Direito”: uma ameaça para a integridade e estabilidade sociais, particularmente nocivo quando a infração aparece de modo manifesto, visível. A teoria sistêmica, por isso, adota um enfoque “sintomatológico”, preocupando-se mais com a manifestação do fato disfuncional do que com as causas do conflito que possam gerar o delito. A pena, por isso mesmo, tem finalidade de reforçar o conteúdo da norma (isto é, o Direito penal).
Para a teoria sistêmica, sustentada pelo funcionalismo radical, o Direito penal não se limita a proteger bens jurídicos, senão funções, isto é, a confiança institucional no sistema assim como a segurança dos co-associados em seu bom funcionamento.
Para comprovar, fundamentar e graduar a culpabilidade não interessa se o sujeito podia e/ ou devia comportar-se de outra forma: a exigência funcionalista de restabelecer a confiança no Direito mediante a contraposição simbólica de uma pena será o critério decisivo, exacerbando-se assim a concepção “normativista”, que prescinde de todo conteúdo psicológico-cognoscitivo no juízo de reprovação.
A pena não é examinada desde um enfoque valorativo (fins ideais da mesma), senão funcional, dinâmico, como qualquer outra instituição social (funções reais que a pena desempenha em função do bom funcionamento do sistema).
A pena, segundo a teoria sistêmica, cumpre uma função de prevenção integradora, que é distinta dos objetivos retributivos, de prevenção geral e especial, que lhe atribuía a dogmática tradicional. Se o delito lesa os sentimentos coletivos da comunidade, isto é, o considerado por “bom e correto”, a pena simboliza a necessária reação social: esclarece e atualiza exemplarmente a vigência efetiva dos valores violados pelo criminoso, impedindo que se diluam e percam eficácia; reforça a convicção coletiva em torno da transcendência desses valores; fomenta e canaliza os mecanismos de integração e de solidariedade social frente ao infrator e devolve ao cidadão honesto sua confiança no sistema.
A primeira crítica que se pode formular contra o funcionalismo sistêmico consiste na sua falta de cientificidade (alto déficit empírico).
A crítica básica centra-se na tendência à neutralidade valorativa, típica da análise sociológica (positivista ou sistêmica).
No que concerne à teoria do delito, as diferenças marcantes entre o funcionalismo moderado (Roxin) e o radical (Jakobs) são as seguintes: • para Roxin o fato punível é composto de tipicidade, antijuridicidade e responsabilidade. Esta última (a responsabilidade) cuida de saber se o agente imputável é ou não merecedor da pena. Seu pressuposto é a culpabilidade bem como a necessidade preventiva da pena. A pena tem finalidade preventiva (geral e especial), não retributiva. A culpabilidade não funciona como fundamento da pena, mas sim, apenas como limite dela; • para Jakobs todas as categorias do delito (tipicidade, antijuridicidade, etc.) devem ser interpretadas de acordo com o fim da pena, que é o preventivo geral positivo (leia-se: a pena existe para reafirmar o valor da norma violada; a pena é um reforço da vigência da norma; a pena reafirma a ordem jurídica e isso incrementa a atitude de confiança e fidelidade ao Direito; a pena exercita a fidelidade ao Direito). O Direito penal não existe para proteger bens jurídicos, mas sim, para reafirmar o conteúdo comunicativo da norma. O Direito penal existe para cumprir uma função de tutela das normas, independentemente do seu conteúdo.
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Parece não haver dúvida que a doutrina brasileira já alcançou, com certa pacificidade, o terceiro estágio, ou seja, a teoria finalista. Pelo menos essa é a posição majoritária. De qualquer modo, na atualidade, como você leu, a concepção de delito que encontra maior ressonância constitucional e maior afinidade com o tipo de Estado democraticamente consagrado que adotamos é a que considera o delito como uma ofensa intolerável ao bem jurídico, protegido pela norma penal e, ao mesmo tempo, objetivamente imputável ao risco proibido criado. Isso é o que estamos denominando de teoria constitucionalista do delito (ou do fato punível), cujas bases teóricas encontram forte ressonância na teoria funcionalista de Roxin, como você acabou de estudar.
2. Bases constitucionais da teoria constitucionalista do delito
Do ponto de vista analítico, preocupa-se a teoria do fato ou do injusto punível em apontar quais são os pressupostos da punição, ou seja, quais são as categorias do fato ou do injusto punível. Ela pode ser construída a partir: • de realidades físico-naturalistas (assim ocorreu com o causalismo de von Liszt e Beling, por exemplo); • de realidades ontológicas (finalismo de Welzel, por exemplo);
• das finalidades da pena (sistema teleológico-racional de Roxin ou funcionalista sistêmico de Jakobs, por exemplo) etc.
Estamos assumindo que a teoria do fato punível deve ser elaborada a partir das finalidades do Direito penal, quais seja, a de proteção de bens jurídicos, de estabelecer um conjunto de garantias frente ao ius puniendi, de redução da violência (inclusive a estatal) e de evitar a vingança privada. Importa sublinhar que as finalidades do Direito penal (aquilo que se pretende com o sistema) não se confundem com suas funções (funções reais desempenhadas pelo sistema na prática), que podem ser: • legítimas: de proteção de bens jurídicos ou
• ilegítimas: função promocional e simbólica.
E se o Direito é um conjunto de normas (como efetivamente é), suas finalidades somente podem ser cumpridas por meio dessas normas de conduta e de sanção.
Silva Sánchez (1992, p. 373), com precisão, afirma:
Dentro da perspectiva teleológico-funcionalista, estimo que a elaboração categorial e sistemática da teoria do delito deve ter como ponto de referência os complexos fins legitimadores do Direito penal (...) a orientação funcional teleológica do sistema somente pode acontecer por meio da mediação da teoria das normas jurídico-penais (...) as normas constituem o instrumento essencial de que se serve o Direito penal para o cumprimento dos seus fins (...) as normas primárias expressam o objetivo de regulação do Direito penal mediante o estabelecimento de diretrizes de conduta (...) a doutrina da antijuridicidade penal (do injusto penal) está atrelada à missão das normas primárias, enquanto a doutrina das demais categorias do fato punível acha-se presidida pela missão das normas secundárias. Em conclusão: os fins do Direito penal condicionam imediatamente a estrutura e o conteúdo das normas jurídico-penais e, mediatamente, a configuração das categorias do delito e seu respectivo conteúdo.
Ampliando-se um pouco mais a conclusão que acaba de ser transcrita, cabe sublinhar: os princípios, normas e valores típicos do Estado Constitucional e Democrático de Direito condicionam os fins legitimadores do Direito penal, que por sua vez condicionam o conteúdo e a estrutura das normas penais, que por seu turno condicionam o conteúdo e a estrutura da teoria do fato ou injusto punível.
É nesse sentido que se pode falar de uma teoria constitucionalista do fato ou do injusto punível, que tem a pretensão não só de apresentar um novo modelo de compreensão do delito, senão também de superar, definitivamente, o sistema puramente formalista do século X.
3. Finalidades do Direito penal e teoria do delito Como acabamos de sinalizar, a teoria do delito pode ser construída a partir de realidades
Ciências Crminais Princípios Constitucionais penais e teoria do delito- A ula 03 físico-naturalistas (causalismo, por exemplo) ou ontológicas (finalismo, por exemplo), das finalidades da pena (sistema teleológico ou racional-final de Roxin, por exemplo), da missão sistêmica ou funcionalista do Direito Penal (Jakobs), etc.
A premissa da qual estamos partindo enlaça a teoria do delito com as finalidades do Direito penal de proteção de bens jurídicos, de estabelecer um conjunto de garantias frente ao ius puniendi, de reduzir a violência − inclusive a estatal − e de evitar a vingança privada (Sánchez, 1992).
Como você viu na Unidade 1, são muitos os princípios constitucionais (explícitos e implícitos) que interferem diretamente na existência e legitimidade do Direito penal (intervenção mínima, exclusiva proteção de bens jurídicos, ofensividade etc.). Tais princípios constituem limites intransponíveis e guias seguros para se definir o conteúdo do Direito penal. As normas penais, que são o veículo de expressão do Direito penal, não podem ter outro significado senão o de alcançar seus fins estabelecidos legitimamente (proteção de bens jurídicos, redução da violência, conjunto de garantias).
A norma penal primária (que cuida do âmbito do proibido) determina (na teoria do fato punível) o conteúdo do fato contrário ao Direito (leia-se: do fato antijurídico ou injusto penal). A norma penal secundária que disciplina o âmbito da sanção correlaciona-se com a esfera da sancionabilidade da conduta proibida.
É preciso, destarte, enfatizar as funções das normas penais para se revelar o estreito vínculo que existe de um lado entre norma penal primária e o injusto penal (este entendido como fato materialmente típico e antijurídico) e, de outro, entre a norma penal secundária e a sancionabilidade.

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